Organizada desde 1986, as Barkley Marathons são notórias por serem quase impossíveis. Uma recordista que participou recentemente na corrida diz-te como é.

“É difícil encontrar o ponto em que a impossibilidade está tão perto.” Quem o diz é Lazarus Lake (nome real Gary Cantrell), a mente por detrás da corrida Barkley Marathons, descrita por antigos competidores como uma “aventura satânica de corrida”.
Organizada desde 1986, esta ultamaratona é inspirada no caminho que James Earl Ray, assassino de Martin Luther King Jr, fez após fugir da prisão Brushy Mountain State Penitentiary, perto de Frozen Head State Park, local da corrida. James Earl Ray percorreu apenas 13 km depois de 55 horas a correr na floresta, tendo sido capturado três dias depois de ter fugido. Quando ouviu a história, Lazarus disse para si mesmo que conseguia fazer no mínimo 100 milhas (160 km) e decidiu desenvolver a corrida na mesma zona.
A prova de Laz ganhou notoriedade em 2014 com o documentário ‘The Barkley Marathons: The Race That Eats Its Young’, no qual detalhes normalmente secretos foram revelados ao público.
O procedimento de candidatura é secreto e tão complicado como a corrida: precisas de enviar um email ao Laz num determinado dia com um ensaio em que expliques porque ele te deve escolher e pagar uma taxa de inscrição de 1.60$. Se fores um dos 40 ‘sortudos’, receberás uma carta de condolências a dar-te as boas-vindas à corrida. ‘Virgens’ de Barkley precisam depois de levar uma matrícula da sua cidade natal quando se registarem para a corrida em Frozen Head State Park, Tennessee, onde lhes é dado acesso a um mapa do percurso que revela as localizações de livros, cujas páginas são necessárias coletar para prosseguir na corrida. Particularidade: não há site ou quaisquer páginas oficiais da corrida.
Nicky Spinks posa com o seu número de corrida antes da Barkley Marathon.
Nicky Spinks a investigar a área de partida antes da corrida
A rota exata muda ligeiramente todos os anos. Desde 1986, apenas 15 pessoas conseguiram terminar a corrida dentro do limite de tempo. De cada vez que alguém termina, Laz torna a corrida mais difícil. A corrida pode começar a qualquer hora entre a meia noite e o meio dia, sendo o aviso dado uma hora antes pelo soar de uma concha soprada por Laz. O uso de GPSs e telemóveis é proibido. A corrida, diz Laz, está desenhada para os corredores falharem. Talvez seja por isso que este festival de sofrimento agarre os corredores como os silvados da corrida agarram membros do corpo.
Este ano o evento decorreu durante o último fim de semana de março. Que se saiba (nunca é divulgada a lista de participantes, sendo estes os responsáveis por dizer se participam ou não), não houve português que tivesse participado na corrida de cinco voltas não assinaladas com cerca de 32 km cada. Para completar a corrida, é necessário fazer todas as voltas dentro de 60 horas, localizar os livros pelo caminho e arrancar uma página para mostrar que se fez o loop completo.
Por esta altura já percebeste o quão difícil é a corrida. Se estás a pensar em que tipo de pessoas têm a ideia louca de participar, damos-te o exemplo de Nicky Spinks, corredora britânica que detém os recordes da Double Bob Graham Round e da Double Ramsay Round, um par de feitos quase sobre-humanos que meros mortais não conseguem compreender. O seu recorde do Double Ramsay é particularmente impressionante: Spinks fez mais de 193 km, escalou 48 picos e somou 18,288m de desnível positivo (o dobro da altura do Everest) em 55 horas, algo que nenhum humano antes dela tinha conseguido.
Nicky Spinks inscreve-se para a Barkley Marathon com Lazarus Lake.
Só entrar na corrida é uma honra
Nunca uma mulher conseguiu terminar esta corrida, mas, com credenciais destas, seria de esperar que Spinks tivesse chance. A britânica falou com a Red Bull para explicar em primeira mão quão duras são as Barkley Marathons.
Como fizeste investigação para esta corrida tão secreta?
Descobrir a rota teria sido bom, mas ninguém te diz e não há nada cá fora. Estudei o mapa e tentei perceber onde estão os vales. Tentei também descobrir que kit as pessoas estão a usar, o que resultou e que erros fizeram que eu pudesse tentar evitar, como lanternas frontais que falham, bastões de caminhada que se partem ou comida insuficiente. O Laz é muito rigoroso: assim que passas o portão de partida não podes voltar atrás para ir buscar um mapa.
Em que consistia o teu treino?
Não estou autorizada a dizer como se consegue um lugar, mas tens de começar a treinar antes de saberes que estás na corrida e continuar. Eu treino continuamente de qualquer das formas, por isso não é como se eu fizesse uma pausa, ainda que a minha massagista desportiva diga que eu deva…
Assim que eu descobri que a minha participação estava confirmada, aumentei o meu treino. Não tendo a fazer mais de 40 milhas [64 km] numa semana normal. Se for para o País de Gales treinar durante um fim de semana o número sobe para 60 [cerca de 98 km]. Não posso sair durante horas e horas devido ao meu trabalho na quinta. Tendo a fazer poucas milhas, mas com muita elevação, por isso, no País de Gales, faria 3,500m de escalada em 15 milhas [24 km]. Se o fizeres vezes de seguida tem um grande impacto nas tuas pernas, especialmente se o acompanhares com uma semana dura de corrida. Eu tinha confiança nas minhas pernas, se conseguisse ir a um ritmo que elas conseguissem manter então estava bem.

Para completar Barkley deves fazer o primeiro loop em menos de 10 horas, mas estava tão quente que não queria ir mais rápido pois já estava a suar o suficiente.

Nicky Spinks
Consegues treinar para a privação de sono que Barkley exige?
Acho que o tenho com o trabalho de quinta. Estive acordada durante muitas noites em fevereiro com os partos dos animais da quinta onde trabalho e por vezes houve noites em que não dormi. Tento seguir em frente, sem sestas ou algo do género. Só aguentar.
Competidores correm pela floresta durante a Barkley Marathon.
O trabalho de Spinks na quinta ajudou-a com a privação do sono
Qual era o teu plano para o loop 1?
Queria fazer par com um veterano pois eles sabem a rota. É a coisa certa a fazer. Toda a gente sabe que quantos mais pares de olhos houver, melhor é, e que nos podemos ajudar uns aos outros a navegar e encontrar os livros. Eu vi a Stephanie [Case] e sabia que ela tinha feito a corrida no ano passado. Havia um tipo chamado Michael que a tinha feito antes e Billy Read, da Irlanda, que também era virgem e, por isso, tinha um plano igual ao meu: agarrar-se a alguém e ser o mais simpático possível.
A rota é famosa pelos silvados tramados. Quão maus eram?
Tenho alguns amigos da orientação que me falaram das ‘bramble bashers’ [meias altas reforçadas nas canelas], então comprei uns quantos pares. Têm uma espécie de esponja. Foram absolutamente brilhantes, mas como estava tanto calor fui de calções, pelo que acabei por rasgar a metade de cima das minhas pernas.
Spinks teve que lidar com plantas espinhosas e muita elevação
Spinks teve que lidar com plantas espinhosas e muita elevação
O primeiro loop correu tão bem como esperado?
Para completar Barkley deves fazer o primeiro loop em menos de 10 horas, mas estava tão quente que não queria ir mais rápido pois já estava a suar o suficiente. Tínhamos esperança de que conseguíamos fazer o segundo loop no mesmo tempo, 11h30.
Passei horas a pensar como iria perguntar à Stephanie se ela se importava que eu fosse com ela no segundo loop. Tinha sido completamente inútil e talvez ela tivesse preferido estar sozinha, mas quando levantei o assunto ela disse que seria ótimo correr comigo no loop 2.
Fala-nos do segundo.
Levámos mais roupas pois era suposto chover um bocado, mas quando começámos a escalar começou a chover com intensidade. No primeiro livro vestimos as nossas roupas extra e dava para sentir um vento frio. Depois, entrámos no famoso nevoeiro de Barkley. Rapidamente, ao invés de estar a correr pela encosta, estávamos a cair.
A chuva tornou o chão letal. Mesmo com os meus inov-8 Mudclaws, quando o chão ficou inclinado, as folhas soltas no topo moviam-se com ele, então começavas a deslizar e tinhas de parar ao segurar numa árvore. Encontrámos uns quantos livros e começámos a falar sobre o limite e quanto tempo tínhamos. A minha temperatura estava a cair. Aquecíamos nas subidas, arrefecíamos nos topos, mas eram as descidas que nos estavam a deixar frias, pois não conseguíamos correr.
Em que altura percebeste que tinha acabado?
Estávamos a chegar a um livro e vimos alguém a correr para nós, na direção errada. Quando chegou até nós estava muito contente por ver outras pessoas e perguntou-nos o caminho para o acampamento. Ele estava no loop 1 e tinha estado perdido por cerca de cinco horas. Isso mete sempre a ideia na tua cabeça: “ele está a desistir, talvez não seja mau…” Ainda assim, apesar de estar congelada, pensei “não vou desistir”. Stephanie disse “não vamos desistir, pois não?” e eu disse “não, não, eu consigo aguentar o frio.”
Sempre que parávamos ambas começávamos a tremer. Então a chuva tornou-se granizo e a temperatura passou dos 20ºC para os -5ºC. Estávamos prestes a seguir quando ela parou. Eu sabia o que ela ia dizer e foi um alívio, pois estava a começar a pensar que me estava a tornar um fardo. Estava tão perto do limite, a tremer. O teu cérebro para de funcionar corretamente, é tão difícil. Tínhamos perdido tanto tempo por aquela altura que não havia maneira de conseguirmos completar o loop, então quando decidimos voltar foi um grande alívio. A tua cabeça transforma-se em banhos quentes e comida quente.
Todos estávamos desapontados, pois a única razão pela qual tivemos que abandonar foi porque não tínhamos levado equipamento de inverno completo. Todos precisávamos de mais três camadas de roupa, chapéus e outras coisas, e é sempre irritante quando sabemos que está tudo no campo. Mas é assim que é.
Como é que o sofrimento se compara às tuas ‘double rounds’?
Foi semelhante à Double Ramsay mas no espectro oposto: estava muito quente na Ramsay e muito frio na Barkley. As pessoas dizem que as colinas são íngremes na Barkley, mas não eram tão íngremes quanto algumas das escaladas na Escócia e no País de Gales. No entanto, definitivamente que está lá em cima com a Ramsay no que toca a sofrimento.
John Kelly desce Rat Jaw no seu quinto e último loop em 2017
John Kelly desce Rat Jaw no seu quinto e último loop em 2017
Consegues perceber o porquê de se ficar obcecado com as Barkley Marathons?
Durante o caminho de volta para o campo, a Stephanie perguntou-me se eu ia voltar. Eu disse que não e ela riu-se e disse que falava comigo amanhã. No dia seguinte, começas a pensar em tudo aquilo que devias ter feito e pensas “Porque não tento outra vez? Não foi assim tão mau. Se tivesse mais roupa…” Depois as pessoas voltam e há outra coisa que lhes acontece. Mas eu tenho tendência a voltar e tentar as coisas novamente…
Que conselho darias a alguém ‘sortudo’ o suficiente para entrar nas Barkley Marathons?
Tens de saber navegar e estar confortável a andar fora de trilhos e caminhos. Faz muitas colinas: a elevação de cada loop é massiva, andas para baixo e para cima a toda a hora. Mentalmente, eu tento preparar-me ao pensar nas coisas que podem correr mal e como lidaria com elas. Leio muito sobre a corrida e ouvi podcasts, o que me ajudou a saber aquilo que me esperava. Nunca ficou tão difícil que tivesse de me persuadir a continuar. O principal problema foi tentar perceber como me manter quente o suficiente para continuar.
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