Ah, “Farto do Leque” ou Fartlek!

“Isto não é maneira de treinar, não é nada! Isto é brincar às corridas!”

Furioso, talvez até demasiado irritado, o jovem olhava-nos de frente, como quem exigia explicações. Parecia interrogar-nos sobre o sentido daqueles quase oitenta minutos de corridas, paragens e sprints no meio da mata, nos arredores de Estremoz.

“Afinal, que maneira de treinar é esta?”, insistiu. “Corremos, paramos, sprintamos, caminhamos, fazemos ritmos vivos e outros de ‘pisar ovos’… Isto não é treino, é para rebentar connosco! Treinar é com cronómetro, com método, não assim ao acaso. Onde é que o professor aprendeu esta maneira de treinar corrida?”

Este episódio aconteceu há quase vinte anos, quando lecionávamos Educação Física na escola secundária local. Estávamos no primeiro período, ninguém nos conhecia na região e, como nos oferecemos para preparar a equipa de corta-mato da escola, combinámos dois treinos semanais ao fim da tarde. Num desses treinos, sempre a correr com os alunos, decidimos fazer uma sessão de Fartlek.

À medida que o treino avançava, o jovem mais talentoso — habituado apenas aos treinos cronometrados — resolveu questionar-nos sobre aquela estranha forma de treinar. “Afinal, que maneira de treinar é esta?”, repetiu, e a frase ecoou entre os trinta alunos como uma acusação. Fez-se silêncio. Só se ouviam os pássaros a esvoaçar.

“Isto é Fartlek”, dissemos a sorrir.

“Farto do quê?”, respondeu ele.

“Farto do Leque”, tentou explicar alguém do grupo.

“Ah, Farto do Leque! Nunca ouvi falar.”

Entre risos e passadas, lá fomos explicando ao grupo os princípios desse método, enquanto o treino continuava e o corta-mato escolar se aproximava.


“Farto do Leque”?

À primeira vista, para quem observa de fora, um treino de Fartlek parece uma completa anarquia. Não há cronómetro, nem distâncias fixas, nem tempos de pausa rigorosos. Apenas a corrida, no seu estado mais natural, em plena natureza. À vista desarmada, parece faltar o “rigor científico” dos modernos métodos de treino. Mas o que existe, e em abundância, é imaginação, prazer e liberdade.

O Fartlek é, antes de mais, um jogo com o terreno, com os declives, com os ritmos e com o próprio corpo. É uma celebração da corrida, sem amarras. O prazer do movimento é o centro de tudo.

E talvez o aluno que chamou “Farto do Leque” tenha, sem querer, definido na perfeição o método. Corria-se e descansava-se, acelerava-se e abrandava-se, abrindo e fechando o esforço como as varetas de um leque. No final, todos estavam exaustos, mas felizes — e tinham percorrido vários quilómetros sem dar por isso.


Origem escandinava

O método Fartlek nasceu na Suécia, pelas mãos de Gösta Olander, um antigo guia de montanha que encontrou na natureza as bases de um treino revolucionário. Na sua estação climática de Volodalen, no norte do país, Olander recebia atletas e treinadores para experiências de preparação física em contacto direto com a natureza.

Rodeada por florestas e lagos, a região era um paraíso. O circuito mais famoso tinha cerca de 800 metros, com duas longas retas ladeadas por pinheiros. Ali, Olander dizia: “Há que colocar o atleta numa situação agradável”. E conseguiu.

Nos anos 40, os corredores que treinaram sob o seu método dominaram o atletismo mundial no meio-fundo e fundo. Nomes como Gunder Hägg (3.43 nos 1500 m em 1944 e 13.58 nos 5000 m em 1952) e Arne Andersson (3.45 nos 1500 m em 1943) eram o exemplo vivo da eficácia do Fartlek.

Enquanto o treino “militar” de pista impunha disciplina e monotonia, Olander promovia liberdade e prazer — e isso fazia toda a diferença.


Princípios básicos do método

1. O local

Escolher um terreno natural e variado, com desníveis, zonas de floresta, areia, relva e trilhos irregulares. Uma pista de atletismo pouco tem a ver com o espírito do Fartlek. Quanto mais “selvagem” o ambiente, melhor: o contacto com a natureza estimula o corpo e a mente.

Em Portugal, temos locais perfeitos para isso: pinhais, dunas, trilhos costeiros e parques naturais em todo o país.

2. A intensidade

Há quem adote o Fartlek como base total do treino, misturando todos os ritmos — desde a caminhada descontraída até à corrida explosiva — numa só sessão. Outros preferem usá-lo como complemento, uma ou duas vezes por semana. O essencial é o binómio esforço–repouso, respeitando os limites e as idades dos atletas.

Gösta Olander propunha três fases de aplicação:

Fase de preparação geral
No início da época, ritmos suaves e progressivos. Evitar subidas duras ou arranques violentos. O corpo deve ganhar base e resistência.

Fase de preparação específica
Introduzir gradualmente ritmos mais fortes e terrenos com maior inclinação. Acelerações mais intensas e menor recuperação entre blocos.

Fase de competição
Aplicar ritmos semelhantes aos da prova. As recuperações tornam-se mais curtas, preparando o organismo para o esforço contínuo da competição.

3. O grupo

Treinar em grupo é ideal. Três ou quatro atletas de nível semelhante motivam-se mutuamente, respondem uns aos outros nas mudanças de ritmo e tornam o treino mais dinâmico. O importante é manter o espírito de treino, não de competição.

Uma boa sessão de Fartlek é intensa, variada e, acima de tudo, divertida. No fim, o corpo sente-se cansado, mas a mente… essa sai leve.


Em resumo:
O Fartlek não é desorganização. É liberdade controlada, prazer na variação, jogo com o terreno e com o corpo. É correr com o coração tanto quanto com as pernas.

Ou, como diria o jovem de Estremoz… é ser “Farto do Leque”.